Uma voz a ler

Audio: Uma voz a ler.

A minha conversa de hoje segue linhas telepáticas, entre um voz terrena e outra celestial. A senhora que me faz companhia é daquelas de há anos, do tempo em que as cartas se enviavam e se recebiam com ansiedade, e a filatelia fazia parte das ocupações de muitas gentes.

Em gaiata brincava nas ruas, nas casas dos vizinhos e nos campos alentejanos por onde corria e sentia a vida conforme deve ser sentida.

De quando em vez punha-se à janela, e trocava palavras com as gentes da aldeia que por ali iam passando.

No tempo da minha companheira de hoje ia-se à fonte e o telefone surgiu em casa como uma das maiores invenções de todos os tempos, que ainda assim não impediam que a predilecção nas conversas se mantivesse no modo presencial.

A leitura não fez parte frequente da sua vida, mas o ouvir histórias sim, fez-se visão das palavras e frases audível pela garganta de quem por casa passava e entrava, naquele tempo em que as portas estavam sempre abertas.

Nunca pensou o que queria ser quando crescesse, as vontades femininas ainda não eram dadas a sonhos profissionais vincados; por isso em adulta continuou a ser filha, irmã, foi mulher casadoira, foi mãe, foi tia, foi avó, foi bisavó e foi cuidadora.

Adivinhando, neste meu diálogo que se tem de recordações, diria que o local onde mais gostava de estar com um livro seria na sua vida e qualquer estação do ano lhe servia.

A encadernação via-a como coisa do seu tempo, onde os livros se cuidavam e embelezavam e para ela o que iria bem com livros seria uma voz (que não a sua) a ler ou a contar o que o folclore tradicional nos ensina, que de histórias de outras histórias se fazem outras tantas.

O seu hobbie era coleccionar, de tudo, sem excepção. Reunia em casa inúmeros interesses que lhe faziam sentido e que articulavam uma narrativa em si.

Perguntando-lhe, em pensamento, que livro gostaria de ver encadernado, sentencio que me responderia um que agrupasse as coscuvilhices que ouvia na Rua da Praça, quando ia às frutas e aos legumes e se quedava à beira das vendedoras que a conheciam tão bem.

A minha companheira de conversa de hoje resolveu que a sua história terrena estava terminada e foi continuá-la noutro lugar, etéreo, perto de outras senhoras e senhores que a abraçaram quando chegou.

Tanto que estava habituada a enviar e receber cartas, que talvez um dia me faça chegar uma, como um milagre (daqueles em que tanto acreditava) num envelope com um selo raro que removerei cuidadosamente e guardarei na arca das lembranças dos que já cá não estão.

One thought on “Uma voz a ler

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s