
Audio: A verdadeira vida. La vraie vie.
Nesta conversa recuo no tempo, conforme me dá tanto prazer, enquanto sorrio ao ler as respostas que a minha companheira de hoje tão generosamente me concede.
Estivéssemos juntas o diálogo ocorreria num bar de Jazz, noutra época que não agora, onde esta senhora estaria em palco, de saia travada e boquilha, numa actuação de covers de Chet Baker, Billie Holiday, entre outros.
Ainda num processo imaginativo, entre um copo e outro de bourbon, saltamos para a esfera do bailado e estou só, sem bourbon, numa plateia a admirar Visotsky, não pela expressão corporal de Baryshnikov mas pela de quem hoje me acompanha.
Finalizando a demonstração, teletransportamo-nos para o presente e aqui encanto-me com as histórias que comigo partilha.
Quando era criança sonhava em deslindar crimes e ambicionava ser detective, tal era o seu desejo que na parede tinha um poster de Hercule Poirot.
Não se tornou detective, mas serve-se das palavras na sua profissão, onde faz vez de professora de francês e de literatura. Através do que lê, conta e imagina apoiando-se na memória para deslindar as suas próprias narrativas.
Recorda-se de estar numa sala de espera num hospital em Varsóvia e dar-se conta de ter um livro de português dos tempos de liceu na mala, pegando nele deslumbrou-se com a Ode Marítima de Álvaro de Campos. Desde este dia a literatura portuguesa ganhou um novo significado na sua vida.
Diz-me que Charles Dantzig escreveu que “a literatura não serve para consolar, serve para encantar” e nesta frase simples retém todo o poder que as palavras podem ter.
Pergunto-lhe se lê em voz alta e a resposta surge num gesto revelador que por si só diz que não resiste a fazê-lo. Sempre e em qualquer circunstância, a cada vez que se depara com um momento que se revela belíssimo lê-o em alta voz, para que o mesmo ecoe nos ouvidos de quem passa.
Aproveita o tempo livre, que se obriga a ter, para escrever, ver filmes e fazer ginástica e se há local que se entrelaça com os livros é um banho quente, sereno e solitário. Assim se vê porque é que tem no outono e inverno as estações do ano que melhor combinam com livros.
Já não escreve cartas, mas em tempos idos, quando o fazia, foi cupido na relação da avó do seu marido com um carteiro finlandês, ora esta história dá ou não uma boa base para um romance?
O que é que para ela vai bem com livros? “La vraie vie”, como escrevia Proust; e a encadernação vê-a como pertencendo a todo o sempre, escolhendo para encadernar “O tempo reencontrado”, que leu e releu, sublinhou e anotou, lhe concedeu parte de si e dos seus anos, tal forma ganhou corpo em si mesma, existindo em paralelo à sua vida. Uma relação afectiva que merece ser tratada. Estou deliciada e espero poder entrar no caminho de encadernar esta obra um dia.
Li algures que “tudo o que importa só é possível compreender através da sensibilidade, sendo esta a forma suprema de inteligência” e sem dúvida que a minha companhia de hoje acolhe um enorme sentido de delicadeza.
Andreia, obrigada, adorei o teu texto.
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