
Audio: Ele. Ela. Sabem lê-los com doçura.
A prática de uma profissão de que se gosta tende a ocupar quase todo o estado mental, tende a ocupar quase todo o tempo e, por isso, tende a ser egoísta e por vezes tóxica. Há circunstâncias, no entanto, em que o trabalho empurra para encontros poéticos ainda que estes, numa análise imediata, possam não traduzir o métier.
Para alguém que lê com a frequência com que vive, como é o caso do meu companheiro de conversa de hoje, as histórias vão para além das letras e exortam a imaginação através dos “sinais captados num passeio na natureza e nos sonhos”.
Investigador e editor tende a organizar o seu próprio movimento de translação através da leitura e assim a permitir, q.b., que os livros decidam sobre as variações climáticas na sua vida.
As cartas, antes enviadas, já não fazem parte da sua rotina, carecem de um destinatário que esteja disposto a alinhar com a paciência e lucidez que a escrita em papel requer.
Tendo como hobbie único a ‘prática de liberdade’ consegue conciliar as narrativas que encontra nos livros, experiências fotográficas, música, cinema, longos passeios, abraços ao mar e deleite a cozinhar. Talvez por isso o local onde mais gosta de estar com um livro seja na solidão, onde pode ler poesia em voz alta.
Gostando de saber do passado, vivendo no presente, olha para o ofício de encadernação como uma “pegada” no futuro, esperançoso, diria eu, que os saberes do antigamente não se apaguem.
Para este senhor, o que vai bem com livros são os que sabem ‘lê-los com doçura’, interpreto que sejam aqueles que genuinamente abraçam a construção de um imaginário que um objecto tão pleno como um livro, oferece.
Quando perguntei que livro gostaria de ver encadernado a resposta foi vasta, porquanto é impossível escolher um só, porquanto não foi só um que o tivesse feito tremer os alicerces da alma. Por aqui se vê que talvez Agostinho da Silva não fosse assim tão utópico ao afirmar que todos somos poetas à solta.
Quando numa resposta me diz que A Teoria da Relatividade foi lida como um romance onde os ‘astros se enamoram uns dos outros’, fazendo-me mesmo acreditar que os movimentos surrealistas e cubistas habitam abraçados num percurso científico, não me espanto que me diga que até um filme mandaria encadernar. Encaro este acto em sentido figurado; ainda assim, bem-aventurada sou ao ganhar noção de que, tal como para outros, a encadernação é vista como algo que acolhe o que permanece na memória.
À medida que o tempo passa, também as leituras são distintas e já se sabe que nunca se olha da mesma maneira para o mesmo objecto, nunca se lê da mesma forma o mesmo livro, nunca se ouve de forma igual a mesma canção e por aí fora.
Uma encadernação permite ao livro ser único, constrói uma roupagem que também se interpreta de forma diferente a cada vez que se revela, confidenciando detalhes escapados numa visão anterior. Nesta conversa, a densidade psicológica de Steinbeck em A um Deus Desconhecido e o absurdo existencial de Camus foram duas sugestões a encadernar.
Bom dia Andréia! Parabéns pelo texto. Desejo a Vocês uma Feliz Páscoa.
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