
Audio: O silêncio. Uns óculos.
Habitualmente oiço dizer muitas vezes “eu sou de letras, não percebo nada de números” ou o contrário. O meu interlocutor nesta conversa mostra que universos que parecem tão dispares estão alinhados, tal qual acontece por vezes com os planetas. O arranjo de mundos e matérias, igualmente nesta circunstância, reforça os interesses que, sob um olhar menos atento, poderiam ser reconhecidos, localizando-se em polos opostos de um mesmo campo magnético.
Os conteúdos sobre análises financeiras, investimentos, mercados bolsistas, … são indispensáveis, mas deixam espaço a outras leituras, que conectem com o seu interior.
Enquanto estudante universitário ganhou um hábito de leitura que não largou, há hábitos assim!
Irmão mais novo. Único rapaz entre meninas. Tendia, em pequeno, a contrariar a disposição para a leitura ávida que imperava na vida das suas irmãs (devoradoras de livros).
A determinada altura conseguiram alargar-lhe o espectro do contacto com as letras, para lá dos almanaques e da banda desenhada, quando o apresentaram às aventuras do detective Enciclopédia Brown, uma excentricidade!
Sente-se um anfíbio, tivesse nascido com guelras o mar era o seu território. A extensão salgada a perder de vista e as ondas fortalecem o seu sentido de ser, dão um propósito e uma paz de espírito que confere momentos de meditação não encontradas em mais nenhum lugar. Pudesse, levaria os seus livros juntamente com a prancha e enquanto fazia um 360 girava na leitura de palavras desprendidas. “Há quem diga que o melhor sítio no planeta Terra… é o mar.”
Ajustando, por vezes, as leituras ao que a meteorologia traz, é eclético nas escolhas mas não esconde a preferência por ensaios.
A calmaria do lugar concede-lhe a permissão, ocasional, para largar a voz e aprimorar a memória, para agarrar a reflexão mais intensamente.
Compreendi que para este senhor as palavras, ainda que unicamente escritas, auxiliam-se numa sonoridade que o silencio abraça e à qual confere múltiplos sentidos.
Revela, porém, que a leitura em voz alta que mais gozo lhe dá é a que oferece aos filhos, encenando vozes, teatralizando os textos e acrescentando pozinhos imaginativos sempre que a criatividade autoriza.
Com uma personalidade muitíssimo sensível, oculta sob o pano profissional, assim que soam as pancadinhas de Molière sobe ao palco um homem para quem a encadernação é intemporal, tendo a substância essencial para engrandecer uma obra. Por isso, sente como intricada a eleição de um livro a encadernar, tal como é complexo nomear um filme ou uma música predilectos. Insisti na identificação de uma obra e depois de reflectir refere que opta por “O livro da sua vida”. Antecipo que este abraçará relatos de memórias, sons e cheiros passados a frases pontuadas.
Depois de encadernado, o que vai bem com este livro será uma bebida, o silêncio e os inevitáveis óculos, aos quais a idade obriga.